Fístula perianal: estudo retrospectivo do tratamento cirúrgico de 241 casos

PERIANAL FISTULA: ESTUDO RETROSPECTIVO DE TRATAMENTO CIRÚRGICO DE 241 casos.

Luciano Ferreira Drager (BIC, CNPq)
Miriam Nogueira Barbosa Andrade (MD)
Sérgio Alexandre Conceição (MD)
José Renan Cunha-Melo (MD)

SUMÁRIO: Fístula perianal, geralmente tem uma etiologia criptoglandular, desenvolvendo-se a partir de um abcesso perianal e comunicando a mucosa anal com a pele perianal. O objetivo deste trabalho é estudar retrospectivamente 241 casos de fístula perianal (172 homens e 69 mulheres; 2,5:1) com idade entre 7 e 80 anos (média: 37,4 anos), operados no Hospital da Clínicas – UFMG, no período de 1977 a 1996. As técnicas cirúrgicas e o resultado pós-operatório foram analisados. Os abscessos perianais com drenagem espontânea foram a etiologia predominante (132 pacientes; 54,8%). Oitenta por cento foram submetidos à fistulectomia como o primeiro tratamento cirúrgico. Entre as complicações precoces (78; 32,4%), a dor local foi a mais freqüente (60; 24,9%). Entre as complicações tardias (136; 56,4%) a recidiva da fístula (101; 41,9%) foi a mais freqüente. Foram realizadas 141 reoperações em 80 pacientes. A fistulectomia foi a técnica cirúrgica predominante empregada para o tratamento (101; 71,6%). O tempo médio de internação foi de 6,3 dias até 1990 e 1,5 dias de 1991 a 1996, após o advento dos leitos de cirurgia de dia no HC-UFMG. O tratamento cirúrgico da fístula perianal tem uma taxa significativa de complicações pós-operatórias e uma alta taxa de recidiva, apesar da curta permanência no hospital.
PALAVRAS-CHAVE: Fístula perianal; abscesso perianal; tratamento da fístula; complicação da fístula.

INTRODUÇÃO

A palavra fístula (em latim) significa flauta, prega, sulco, cano ou tubo. Em cirurgia, implica um trajetória aguda ou crônica de tecido de granulação, conectando duas superfícies epiteliais que podem ser cutâneas, mucosas ou ambas.

Fístula perianal geralmente tem etiologia criptoglandular, desenvolvendo-se a partir de um abscesso perianal e comunicando a mucosa anal com a pele perianal. A infecção das glândulas anais ocorre em 90 por cento dos casos1. Pode também aparecer no curso de infecções específicas como tuberculose, actinomicose, linfogranuloma venéreo, doença de Crohns, retocolite ulcerativa, trauma, corpos estranhos, tumores malignos do reto, próstata, bexiga, útero ou ânus, doença de Hodgkins, leucemias e pós-radioterapia2,3.

Homens predominam na maioria das séries com uma proporção masculino: feminino variando de 2:1 a 7:1. A distribuição etária tem um pico de incidência entre a terceira e quinta décadas4.

Foram propostas várias classificações para a fístula perianal. Algumas delas são brevemente descritas abaixo:

(1) Completa, cega externa e cega interna. Esta classificação postulou uma regra relacionada com o furo interno ao externo. Se o furo externo é anterior a uma linha imaginária passando no ponto médio do ânus, a fístula segue um percurso directo para o canal anal. Se o buraco externo é posterior a essa linha, o percurso é normalmente sinuoso. Uma excepção a esta regra é uma abertura externa anterior situada a mais de 3 cm da margem anal, situação em que o percurso pode curvar e terminar na linha média posterior2,

(2) Subcutânea e submucosa, anal baixa, anal alta, ano-rectal5. Nesta classificação as fístulas perianais são agrupadas de acordo com a relação do trato principal com a musculatura anal.

(3) Interesfincteriana, transphincteriana, supraesfincteriana e extraesfincteriana1. Esta classificação define as fístulas de acordo com o curso que fazem, com especial referência ao anel anorretal.

(4) Simples e complexo. A fístula simples constitui 90-95% do total, caracterizada por um trato fistuloso fácil de identificar. A fístula complexa tem mais de um curso fistuloso, subcutâneo ou não. O tratamento é mais difícil e as complicações pós-operatórias são mais freqüentes6. O tratamento das fístulas perianais crônicas é geralmente cirúrgico e as complicações resultantes do tratamento, mesmo não sendo freqüentes, podem ser graves. A incontinência fecal por lesão do esfíncter anal externo é um exemplo de complicação que pode ocorrer.

O objetivo deste trabalho foi estudar retrospectivamente 241 casos de fístula perianal operados no Serviço de Gastroenterologia, Nutrição, Cirurgia Geral e Cirurgia Digestiva (Serviço GEN-CAD) do Hospital das Clínicas – UFMG, no período de 1977 a 1996. Foram analisadas a distribuição etária e sexo, a etiologia, as técnicas cirúrgicas e o resultado pós-operatório.

PATIENTES E MÉTODO

Este é um estudo retrospectivo composto por 241 pacientes (172 homens e 69 mulheres – 2,5:1) com idades entre 7-80 anos (média de 37,4 anos) que foram operados de fístula perianal no período de 1977 a 1996. A distribuição etária dos pacientes está representada na figura 1.

Image46.gif (4001 bytes)

Fig. 1 – Distribuição etária de 241 pacientes com fístula perianal.

Os dados foram obtidos de acordo com um protocolo previamente estabelecido contendo informações sobre tempo de evolução, etiologia, uso de antibióticos, doenças proctológicas associadas, cirurgia prévia, tipo de cirurgia e complicações pós-operatórias.

Os dados dos pacientes foram revisados a partir de registros armazenados no Serviço de Registros Médicos e Estatísticos, HC-UFMG. Cento e noventa pacientes foram operados pela primeira vez por membros do Serviço GEN-CAD (78,8%). A primeira operação foi realizada em outros hospitais em 51 pacientes (21,2%).

RESULTADOS

Etiologia: O abscesso perianal com drenagem espontânea foi a etiologia mais comum, ocorrendo em 132 pacientes (55%). Outras etiologias da fístula perianal são mostradas na figura 2.

Image47.gif (5200 bytes)

Fig. 2 – Etiologia de 241 fístulas perianais tratadas por cirurgia no Hospital das Clínicas – UFMG, Belo Horizonte, MG.

Tempo de evolução: O tempo entre o aparecimento da fístula e o diagnóstico variou de 10 dias a 15 anos. Esta informação não foi possível em 46 pacientes (19,1%).

Tipo da fístula: A fístula simples ocorreu em 137 pacientes (56,9%) e complexa em 22 pacientes (9,1%). O tipo de fístula não foi contabilizado em 82 casos (34%). A Figura 3 contém informações sobre o tipo de fístula perianal e porcentagem de recidiva.

Image48.gif (4715 bytes)

Fig 3: Distribuição da fístula perianal de acordo com o tipo e taxa de recorrência.

Doenças proctológicas associadas: Hemorróidas (21; 8,7%) e marcas cutâneas (20; 8,3%) foram as doenças proctológicas associadas mais frequentes (fig. 4).

Image49.gif (5344 bytes)

Fig. 4 – Doenças proctológicas associadas em pacientes com fístula perianal

Cirurgia: Cento e noventa e quatro pacientes (80%) foram submetidos à fistulectomia isoladamente como primeiro tratamento cirúrgico. Nos 20% restantes, operações por condições proctológicas associadas (hemorróidas, abscesso, fissura, condiloma, pólipos, etc.) ou fistulotomia também foram realizadas.

Três e oitenta e dois procedimentos cirúrgicos foram realizados em 241 pacientes, dando uma taxa de 1,58 operações/paciente (fig. 5).

Image50.gif (3630 bytes)

Fig 5: Número de procedimentos cirúrgicos, taxa de reoperações e recidivas em 241 pacientes com fístula perianal.

Obs: Como 51 pacientes foram operados em outros hospitais antes de serem incluídos no grupo de 221 reoperações.

Complicações: Entre as complicações precoces (78; 32,4%) a dor local (60; 24,9%) foi a mais frequente. Complicações tardias ocorreram em 136 pacientes (56,4%). A recidiva (101; 41,9%) predominou entre as complicações tardias. Apenas cerca de 11,2% dos pacientes com fístula perianal não apresentaram complicações precoces ou tardias. A dor como complicação, considerando que ela ocorre no pós-operatório de quase todos os tipos de cirurgias, o índice de complicações precoces cai para 7,5% e para 51% para os tardios.

Reoperações: A fistulectomia foi a técnica cirúrgica predominante empregada nas recidivas (101; 71,6%). Outras técnicas como curetagem do trato fistuloso (30; 21,3%), colostomia (7; 5%), laparotomia (1; 0,7%), ressecção de teratoma (1; 0,7%), ressecção de nódulo (1; 0,7%) também ocorreram. Em 21 casos (14,9%), um curativo elástico ao redor dos músculos do esfíncter anal externo foi associado à fistulectomia.

Cirurgia Anterior: Cinquenta e um pacientes (21,2%) tiveram história de cirurgia para fístula perianal em outros hospitais e se apresentaram ao nosso hospital com doença recorrente. Estes pacientes foram alocados no grupo de recorrência e foram reoperados conforme descrito acima.

Antibióticos: Vinte e sete pacientes (11,2%), utilizaram antibióticos. Em oito deles a fístula era simples (3,3%), e em cinco eram complexos (2,1%). Catorze pacientes (5,8%) que haviam utilizado antibióticos não tinham relato sobre o tipo de fístula.

Hospitalização: O tempo médio de internação foi de 3,9 dias. Separando o tempo de estudo em dois períodos observou-se uma diminuição nos dias de internação quando o primeiro período (1977-1990) foi comparado com o segundo (1991-1996). No primeiro período, o tempo médio de internação foi de 6,3 dias, enquanto no segundo período esse número caiu para 1,5 dias, coincidindo com os implantes de leitos de cirurgia de dia no HC-UFMG.

Mortalidade: Nenhuma morte resultante da própria fístula perianal ou do tratamento foi relatada na presente série.

DISCUSSÃO

A maioria das fístulas perianais, sem dúvida, são causadas por infecção, após abscessos perianais com drenagem intermitente. Entretanto, é importante excluir as fístulas perianais associadas à doença de Crohns e retocolite ulcerativa, evitando cirurgias extensas, pois a cicatrização da ferida é prejudicada e uma taxa de recorrência proibitiva é observada nestas doenças inflamatórias intestinais7,

Os sintomas e sinais desagradáveis da fístula perianal geralmente fazem com que o paciente visite o médico. Infelizmente, há muitos casos em que o diagnóstico é retardado, por ignorância, preconceito ou medo do paciente. Em cerca de 12% dos pacientes com fístula perianal em nossa amostra, o tempo de evolução foi superior a cinco anos.

As doenças proctológicas associadas são frequentemente observadas com fístula perianal2. Em nossa amostra, hemorróidas e marcas cutâneas foram as condições mais frequentes, mas nenhum estudo para estabelecer relação causal foi realizado.

O melhor tratamento cirúrgico é a excisão completa do trato fistuloso. Esta técnica chamada fistulectomia, foi utilizada em quase todos os casos.

Apesar de ser uma doença comum, ocorrendo em pacientes jovens e de fácil tratamento cirúrgico, a taxa de recidiva é alta nas fístulas perianais. Dados da literatura revelam uma taxa de recidiva que varia de 0 a 33%8. Quando apenas as fístulas perianais de Crohns são consideradas, a taxa de recidiva foi de 48% em um ano e 59% em dois anos9. A fístula simples foi o tipo mais comum de fístula, ocorrendo em 56,9% dos pacientes. Este fato está de acordo com a literatura. Nunca foi inútil, mesmo nestes casos, a recidiva foi alta (33,6%). A explicação para a alta taxa de recidiva nestes casos simples pode ser o fato de muitos cirurgiões jovens em seu programa de treinamento operarem no Serviço GEN-CAD. Algumas fístulas são difíceis de tratar, exigindo mais de uma intervenção cirúrgica, o que explica, pelo menos em parte, o alto índice de recidiva. Se considerarmos a baixa taxa de mortalidade desta condição, é bem possível explicar porque o tratamento em muitos hospitais do Brasil é feito por cirurgiões jovens com pouca experiência, contribuindo para o aumento da taxa de recidiva. Desta forma, a experiência da equipe cirúrgica pode ter um papel importante para o sucesso do tratamento, diminuindo a taxa de recidiva. A identificação do curso fistuloso completo é obrigatória para evitar a sua remoção parcial e a persistência do tecido de granulação, o que manterá o processo fistuloso. Algumas das recidivas são devidas à ressecção incompleta da fístula10,

Continência anal, é uma grave complicação pós-operatória, resultando em problemas psico-sociais para os pacientes. Pode aparecer devido à secção muscular durante o acto cirúrgico, mas também pode ser secundária à destruição de esfíncteres causada por um abcesso. Na presença de uma fístula transphincteriana é possível prevenir uma lesão acidental dos músculos usando um elástico ao redor do esfíncter. Este artefato corta lentamente o músculo, permitindo que os processos de cura regenerem gradualmente o músculo e evitando o comprometimento da função muscular. Esta técnica foi realizada em 21 pacientes (14,9%) com bons resultados.

Quinqüenta e um pacientes tinham sido operados previamente em outros hospitais, para que suas fístulas fossem tratadas. Estes pacientes foram alocados no grupo de recorrência, mas não havia informações sobre como e quantas vezes haviam sido operados.

O uso de antibióticos no pós-operatório não foi uma rotina em nosso serviço. Apenas poucos casos selecionados receberam microbicidas, mostrando que a infecção na maioria dos casos não é um achado importante nesta condição clínica.

A diminuição do tempo de internação observada desde 1991 pode ser explicada pela adoção de leitos de cirurgia diurna no HC-UFMG para pacientes com doenças orificiais. Os pacientes são admitidos pela manhã, operados na tarde do mesmo dia e recebem alta na manhã do dia seguinte. Devido a esta política, a permanência hospitalar dos pacientes com fístula perianal foi significativamente reduzida quando comparada ao período anterior, de 1977 a 1990, quando a permanência hospitalar foi maior.

CONCLUSÕES

Fístula perianal é uma doença comum que ocorre mais em machos jovens do que em fêmeas. O tratamento cirúrgico da fístula perianal é seguido por uma alta taxa de recidiva (41,9%). Apesar desta alta taxa de recidiva, os pacientes podem receber alta após no máximo 36 horas da admissão hospitalar. Não ocorreu mortalidade na presente série, causada pela própria doença ou pelo seu tratamento cirúrgico.

1- Parques, A.G. & Morson, B.C. – Fistula-in-ano. A patogénese da fístula no ano. Proceedings of The Royal Society of Medicine, 55:751-4, 1962.

2- Goodsall, D.H. & Miles, W.E. – Fístula Ano-Rectal. Doenças do Ânus e do Rectum. Longmans, Verde & Co, 92-137, 1900.

3- ROSS, S.T. – Fistula-in-ano. Surgical Clinics of North America, 68: 1417-26, 1988.

4- Seow-Choen, F. & NiCHOLLS, R.J. – Fístula Anal. British Journal of Surgery , 79:197-205, 1992.

5- Gabriel, W.B. – Fistula-em-ano. In: GABRIEL, W.B. – The Principles and Practice of Rectal Surgery. Londres, HK Lewis & Co, 1945. p. 160-97.

6- Fazio, V.W. – Complex Anal Fistulae. Clínicas de Gastroenterologia da América do Norte, 16:93-114, 1987.

7- GOLDBERG, S.M.; NIVATVONGS, S.; ROTHENBERGER, D.A. – Cólon, Reto e Ânus. In: SCHWARTZ, S.I, – Princípios de Cirurgia. 5. ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1991 p. 1025-96.

8- Garcia-Aguilar, J.; Belmonte, C.; Wong, W.D.; Goldberg, S.M.; Madoff, R.D. – Cirurgia da fístula anal: Factores Associados à Recorrência e Incontinência. Doenças do Cólon & Rectum, 39:723-9, 1996.

9- MAKOWIEC, F.; JEHLE, E.C.; STARLINGER, M. – Curso clínico das fístulas perianais na doença de Crohns. Gut, 37: 696-701, 1995.

10- SANGWAN, Y.P.; ROSEN, L.; REITHER, R.D.; STASIK, J.J.; SHEETS, J. A.; KHUBCHANDANI, I.T. – A fístula simples é simples? Diseases of the Colon & Rectum, 37: 885-9, 1994.

Departamento de Cirurgia, Faculdade de Medicina e Serviço GEN-CAD, HC, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG, Brasil.

Dereço para reimpressões:
Professor José Renan Cunha-Melo
Departmento de Cirurgia FM – UFMG
Av. Alfredo Balena 190, Santa Efigênia CEP 30130-100
Belo Horizonte, MG, Brasil
Tel/Fax: (031) 2736530
E-mail: [email protected]
Apoio financeiro: CNPq, FAPEMIG.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.