A última década, técnicas quimiogenéticas e optogenéticas revolucionaram a neurociência integrativa ao fornecer novas ferramentas para manipular reversivelmente a atividade de populações específicas ou sistemas neurotransmissores com maior seletividade (Sternson e Roth, 2014; Roth, 2016; Wiegert et al., 2017). Em comparação com a optogenética, que permite uma modulação neuronal rápida e faseada com alta resolução temporal, a quimiogenética permite uma modulação mais alargada dos sistemas, o que é particularmente útil para estudos centrados em fenómenos tónicos (por exemplo, investigação da implicação da dopamina em processos motivacionais; Whissell et al., 2016). Entre as ferramentas quimiogenéticas, os receptores de designer exclusivamente ativados por drogas de designer (DREADDs) são amplamente utilizados e são referidos como um sistema biológico “lock-and-key” para manipulação seletiva da atividade celular através de vias de sinalização de proteína G. Desenvolvido pela primeira vez de forma muito elegante pelo grupo de Roth (Armbruster et al.., 2007), este receptor acoplado à proteína G (GPCR) é um receptor muscarínico: a fechadura, que foi mutada para responder apenas à clozapina-N-óxido (CNO), a chave, um metabolito derivado da clozapina atípica antipsicótica, caso contrário, potencialmente sem actividade farmacológica.
No entanto, desde 2016, algumas publicações têm levantado questões preocupantes sobre o uso da CNO. Primeiro, doses relativamente altas de CNO (10 mg/kg) administradas sistemicamente podem ter atividade farmacológica fora do alvo, como evidenciado pela indução de efeitos comportamentais em ratos e camundongos não mediados por DREADDs (MacLaren et al., 2016; Gomez et al., 2017; Baerentzen et al., 2019). Além disso, Gomez et al. (2017) mostraram que a CNO não atravessa facilmente a barreira hematoencefálica, pode exibir baixa afinidade de ligação DREADD, e foi retro-metabolizada em clozapina, tornando-se o verdadeiro efetor dos DREADDs. Com base nessas observações marcantes, sugeriram o uso direto de baixas doses de clozapina (0,1 mg/kg) para ativar os DREADDs ao invés da CNO. Entretanto, o uso de baixas doses de clozapina em vez de grandes doses de CNO gradualmente converte-se em clozapina, o que leva a duas grandes limitações. Primeiro, não é óbvio que a clozapina, em injeção aguda ou difusão prolongada, atua sobre os DREADDs da mesma forma (Mahler e Aston-Jones, 2018). Segundo, como a clozapina é um agente antipsicótico atípico, ela tem numerosos alvos endógenos, como receptores serotoninérgicos, muscarínicos ou dopaminérgicos, com afinidades relativamente fortes (Meltzer, 1989; Schotte et al., 1993; Brunello et al., 1995; Ashby e Wang, 1996; Armbruster et al., 2007) e são susceptíveis de induzir efeitos fora do alvo, mesmo com doses baixas. De fato, a dose de 0,1 mg/kg de clozapina recomendada para experimentos DREADD foi encontrada para aumentar significativamente o comportamento relacionado à ansiedade em ratos (Manzaneque et al., 2002), bem como em ratos (um efeito que também observamos; R. Goutaudier e S. Carnicella, observações não publicadas), onde a clozapina também afeta a locomoção através da sedação potencial e prejudica a flexibilidade cognitiva (Ilg et al, 2018).
Embora a ocorrência desses efeitos possa depender da espécie, cepa ou sexo utilizado, e possa ser muito discreta (já que nem todas as dimensões comportamentais são afetadas); eles têm o potencial de interferir significativamente no desempenho dos animais em uma variedade de tarefas comportamentais. O elevado stress e ansiedade podem ser factores de confusão nos estudos de memória ou de dor, por exemplo (Sousa et al., 2006; Sorge et al., 2014). Além disso, comportamentos relacionados a drogas de abuso ou distúrbios psiquiátricos, como esquizofrenia, ansiedade ou flexibilidade cognitiva podem modificar todo o fenótipo (Floresco et al., 2009; Koob e Schulkin, 2018). Com base nessas observações, precauções importantes são necessárias com a clozapina para evitar estudos comportamentais tendenciosos.
Uma nova molécula especificamente desenhada para DREADDs seria mais seletiva? Compound 21 (C21) é um ligante sintético DREADD, desenvolvido em 2015 (Chen et al., 2015) e parcialmente caracterizado in vitro bem como in vivo em 2018 (Thompson et al., 2018). Mais uma vez, em baixas doses (<3 mg/kg), foi descrito para ser desprovido de efeitos comportamentais fora do alvo e capaz de alterar o comportamento de animais DREADD-expressores. Este estudo foi reforçado por Jendryka et al. (2019), que conduziram experimentos farmacocinéticos e farmacodinâmicos usando ratos e C21 (3 mg/kg). Eles mostraram que 30 min após a administração de C21 a concentração da molécula no LCR foi >10 vezes maior que o EC50 estimado para ativação de DREADD (LCR = 40 nm e EC50DREADD = 3 nm), e sem retro-metabolização em clozapina. Entretanto, os resultados de um recente estudo pré-impresso BioRxiv em ratos, camundongos e macacos (Bonaventura et al., 2018) sugerem que, embora C21 exiba uma baixa penetração cerebral, uma dose de 1 mg/kg já pode modificar a função cerebral em camundongos do tipo selvagem. Além disso, uma fraca afinidade e ocupação para DREADDs foi observada in vitro em fatias de cérebro de ratos, assim como in vivo em camundongos e macacos em um estudo de tomografia por emissão de pósitrons. Com base na mesma investigação experimental que para C21, eles propuseram, como alternativa, dois outros ligandos, JHU37152 e JHU37160, que possuem uma maior potência in vivo para DREADDs e potencialmente menos efeitos fora do alvo (Bonaventura et al., 2018). Embora esta nova geração de ligandos DREADD pareça promissora, devido à sua novidade, eles ainda são pouco caracterizados e permanecem estruturalmente homólogos à clozapina e à CNO. Uma caracterização exaustiva na investigação celular a comportamental será portanto crucial para excluir as potenciais armadilhas encontradas para a CNO.
Uma solução alternativa para melhorar a seletividade das abordagens quimiogenéticas seria utilizar outra fechadura e combinação de chaves. Como tal, o receptor de ópio-DREADD (KORD) é um GPCR inibitório mutante derivado do receptor de ópio humano κ (Vardy et al., 2015). Em comparação com os DREADDs clássicos que ligam a clozapina, CNO, C21 ou compostos de JHU, a KORD é engajada pela salvinorina B, um metabolito semelhante ao da salvinorina A, um agonista seletivo da KOR, 2015, Aldrin-Kirk et al., 2016), permanece marginalmente usado porque reduz apenas a atividade neuronal em um curto período de tempo (Aldrin-Kirk e Björklund, 2019). Além disso, a salvinorina B exibe alguma afinidade pela KOR endógena em altas concentrações e ainda não se beneficiou de uma caracterização em profundidade como é feita atualmente para os compostos relacionados a DREADD (Roth, 2016). Substituindo o GPCR por um canal de íons mutantes, outro receptor alternativo projetado chamado de canais de íons de liga e agregados (LGICs) é uma opção desenvolvida pelo laboratório Stenson (Magnus et al., 2011). Em comparação com os DREADDs, os LGICs combinam o domínio ligante de um receptor nicotínico mutante com o domínio de poros iônicos de outro receptor escolhido para criar um canal iônico quimérico. Similar aos DREADDs, este canal híbrido é ativado por um pequeno agonista derivado da quinuclidinil benzamida, um agonista receptor nicotínico de acetilcolina α7, e permite a troca iônica através da membrana neuronal. Entre outras limitações específicas desta abordagem (Aldrin-Kirk e Björklund, 2019), também compartilha com DREADDs o uso de um ligante farmacológico que pode potencialmente interagir com receptores endógenos, dependendo das condições experimentais. Finalmente, todos esses bloqueios derivam de receptores endógenos e, como tal, não conseguem se livrar das limitações intrinsecamente ligadas à farmacologia.
Além desses desenvolvimentos recentes e das questões que permanecem, uma pergunta crucial deve ser feita: será que uma chave totalmente seletiva e inerte alguma vez será encontrada? Provavelmente não. É essencial ter em mente que os DREADDs são ferramentas quimiogenéticas que combinam genética e farmacologia. Embora as abordagens genéticas ofereçam um controle poderoso da expressão das fechaduras (ou seja, DREADDs) em populações celulares específicas, ou subpopulações com abordagens condicionais, elas derivam de GPCRs endógenos e, como tal, estão sujeitas aos mesmos limites que a farmacologia clássica para a chave. Portanto, é improvável que sejam encontradas moléculas que exibam alta afinidade de ligação para os DREADDs sem afinidade para alguns dos numerosos receptores que já estão presentes no cérebro e que estão intimamente relacionados aos DREADDs. Por exemplo, a clozapina tem uma afinidade muito alta para os DREADDs, mas também para o receptor serotoninérgico 5-HT2 (Ki = 10-8 para ambos; Armbruster et al., 2007; Gomez et al., 2017), e uma alta afinidade para uma ampla gama de outros GPCRs (Ki = 10-7 a 10-6; Armbruster et al., 2007). Mesmo os ligantes sintéticos que são especificamente concebidos para esta técnica quimiogenética apresentam afinidades substanciais para receptores endógenos. Por exemplo, embora JHU37152 e JHU37160 tenham uma menor afinidade para os receptores 5-HT do que a clozapina, eles têm um perfil geral similar a esta droga, com uma afinidade ainda maior para os receptores muscarínicos (Bonaventura et al., 2018), sugerindo efeitos potencialmente mais fortes fora do alvo. C21 também exibe uma maior afinidade para o receptor histaminérgico H1 do que para DREADDs (Ki > 10-8 e Ki = 10-7,2, respectivamente; Thompson et al., 2018) e um maior potencial de ligação aos receptores opióides do que a clozapina (Bonaventura et al., 2018). Para minimizar as armadilhas desta poderosa abordagem, independentemente da escolha da chave, devem ser tomadas precauções críticas (Fig. 1).
Três passos propostos para validar as condições experimentais para a seletividade e eficiência do DREADD. (1) A nível neurobiológico, encontrar as condições experimentais ideais, ligando, e concentração com experimentos celulares, eletrofisiológicos, ou neuroquímicos antes da investigação comportamental. (2) Confirmar que um efeito é DREADD mediado por dois ligandos diferentes em comparação com o veículo. (3) Não esqueça de incluir animais sem DREADD (expressando apenas o gene repórter) durante os experimentos para verificar se o efeito, na dose escolhida, é específico para a interação receptor-ligante.
Primeiro, antes de qualquer experimento comportamental, as condições experimentais devem ser testadas para encontrar o melhor ligante e a dose ou doses ideais, dependendo da abordagem experimental. Os DREADDs não devem ser considerados como uma ferramenta chave na mão; experimentos celulares, neuroquímicos ou eletrofisiológicos devem ser realizados antes do estudo comportamental (Mahler et al., 2014; Beloate et al., 2016; Boekhoudt et al., 2016) para confirmar a eficácia do ligante na dose escolhida no sistema de interesse. Além disso, animais de controle sem DREADD também devem ser incluídos para verificar a ausência de efeitos neurobiológicos específicos do ligante ou do receptor per se que podem ser ativados por um neurotransmissor ou ter uma atividade constitutiva (Saloman et al., 2016).
Segundo, quando possível, dois ligandos DREADD diferentes devem ser testados para confirmar que os efeitos comportamentais observados são especificamente mediados por DREADD. As ações farmacológicas específicas sobre DREADDs seriam semelhantes, mas os efeitos fora do alvo podem ser diferentes.
Terceiro, e o ponto mais crítico, controles farmacológicos convencionais devem ser utilizados. A mesma filosofia da farmacologia deve ser aplicada, e, como para experimentos neurobiológicos, grupos de animais transgênicos sem expressar DREADDs (por exemplo, DREADDs vetores virais vazios) devem ser integrados para verificar os efeitos seletivos do ligante e a dose escolhida (Smith et al., 2016, Campbell e Marchant, 2018; Mahler e Aston-Jones, 2018; para um exemplo de estudos experimentais seguindo este desenho, ver também Xia et al., 2017; Cope et al., 2019). Essa afirmação pode parecer trivial, mas a busca de um ligante seletivo absoluto e a atratividade dessa abordagem já levaram a alguns estudos comportamentais superconfiantes, às vezes conduzidos na completa ausência desse controle.
Em conclusão, DREADDs fornecem uma maneira precisa de manipular circuitos e comportamentos neurais, e oferecem uma grande alternativa à optogenética para manipular tonicamente uma subpopulação celular específica, abrindo assim novas e excitantes avenidas de pesquisa. Entretanto, assim como as propriedades térmicas da luz na optogenética podem levar a efeitos específicos (veja também Owen et al., 2019), é necessária uma maior precaução com a quimiogenética, e controles padrão devem ser obrigatórios. As limitações DREADD devem ser reconhecidas e deve ser tomado tempo para evitar ou controlar possíveis efeitos fora do alvo e para verificar que esta abordagem não induza parcialidade per se. O uso dos pontos fortes da genética enquanto se presta atenção aos pontos fracos da farmacologia irá maximizar o potencial desta abordagem.