No seu “Sermão para o Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda”, o primeiro dos de António Vieira: Seis Sermões, o jesuíta Padre Vieira (1608-1697) deixa o seu público ouvir uma conversa com Deus, enquanto uma frota holandesa se afastava das costas de Salvador da Bahia em 1640, prestes a invadir a capital colonial: “Mas como, Senhor, Vós tanto quereis e exigis, fazei o que Vos aprouver. Entrega o Brasil aos holandeses, entrega-lhes as Índias, entrega-lhes as termas, entrega-lhes tanto quanto nós temos e possuímos, põe o Mundo nas mãos deles; e quanto a nós, portugueses e espanhóis, deixa-nos, repudia-nos, arruina-nos, acaba-nos. Mas eu só digo, e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que aqueles que Vós agora desfavoreceis e rejeitais, Vós podeis um dia querer e não ter” (46).
Para os leitores contemporâneos que poderiam esperar prosa barroca, exposição teológica sistemática, ou exposição contextualizante das escrituras na pregação moderna inicial, o sermão de Vieira (um proferido bastante cedo em sua carreira) poderia vir como uma surpresa. Ele oferece uma discussão com Deus, às vezes suplicando e, em outras, fazendo fronteira com a zombaria. Os sermões Monica Leal da Silva e Liam Brockey editaram, traduziram e introduziram um pequeno fragmento do corpus de sermões de Vieira, entregues ao longo de várias décadas e originalmente publicados em doze volumes entre 1679 e 1699 – consistentemente seduzem e chocam, afetam, surpreendem e edificam, trazendo pela primeira vez para o inglês mais da obra deste renomado diplomata e orador.
Da Silva e a introdução de Brockey sintonizam de forma útil os leitores com a vida, a pregação e o pensamento de Vieira, e também contextualizam cada um dos seis sermões que os editores incluem neste volume. O jesuíta Vieira possuía um notável alcance global, não apenas onde suas palavras, ao mesmo tempo em que se veriam e refinavam, impressionaram os ouvintes de primeira mão – na Bahia, Lisboa e Roma-mas também em lugares tão distantes como a Cidade do México e Pequim, onde seus sermões foram lidos por pessoas como Sor Juana Inés de la Cruz e seus irmãos missionários jesuítas.
Além da habilidade retórica do jesuíta, amplitude geográfica e impacto em figuras proeminentes do século XVII, por que ler seus sermões hoje? Em primeiro lugar, os sermões de Vieira trazem muito a lume sobre o gênero de sermão do século XVII, lançando luz não só sobre os desenvolvimentos políticos no Império Português da sua época, mas também fornecendo um ponto de vista único na prática do catolicismo no mundo atlântico do século XVII. Aqui temos um pregador com uma visão criativa o suficiente para contemporaneamente questionar o gênero de sermão em sua pregação – ou seja, pregar sobre como a pregação pode e deve ser feita. No seu Sermão Sexagesima, por exemplo, o Jesuíta argumentou que o diabo podia citar as Escrituras e escarneceu da justaposição da veste profética e penitencial dos frades mendicantes com as palavras polidas e floridas que lhes saíam da boca quando pegavam no púlpito (121). Para Vieira, os sermões devem ser organizados em torno de um ponto claro e específico, e também edificar e perturbar, trabalhando sobre os sentidos do público. Os sermões devem “converter” o ouvinte – fenômeno que Vieira descreve como ajudar o ouvinte a “entrar em si mesmo e ver a si mesmo” (101). (O impacto dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola e sua ênfase em colocar as verdades divinas em relação com os desenvolvimentos reais da história e em um Deus que chama as pessoas através de seus sentidos, é evidente aqui e ao longo dos sermões de Vieira)
Os leitores sem dúvida estarão interessados na posição idiossincrática de Vieira sobre algumas das questões políticas mais prementes que definiram sua época: escravidão indígena e africana e questões relacionadas com os Novos Cristãos, a Inquisição e a pureza do sangue. Enquanto os leitores que olham para Vieira como um defensor liberal moderno dos direitos humanos provavelmente se afastarão dos sermões de Vieira insatisfeitos, o fato é que Vieira era um negociador mais do que capaz. Ele recorreu ao apoio e protecção, em diferentes momentos da sua vida, do Rei João VI e da Companhia de Jesus, evitando a censura inquisitorial e permitindo uma certa qualidade de liberdade no seu pensamento, pregação e acção. Dadas estas circunstâncias, Vieira, sempre de espírito apocalíptico e pensando no plano de Deus na história humana, conseguiu de alguma forma pintar um quadro dos empreendimentos imperiais portugueses como parte do plano divino e, ao mesmo tempo, apontar para a condenação daqueles que abusaram do seu poder detendo escravos ou para a corrupção envolvida na perseguição de novos cristãos e na expulsão de judeus. Se sobre a questão dos novos cristãos e judeus a posição de Vieira era firme, a sua posição sobre a escravatura indígena e (especialmente) africana era por vezes mais mediana, ficando aquém, por exemplo, de exigir a abolição total da escravatura africana no Império Português. O pensamento de Vieira sobre estas questões oferece uma janela para o possível e “pensável” (para usar o termo de Michel Rolph-Trouillot) fundamento para a crítica institucional de base religiosa na sua época.
O quadro do trabalho e do pensamento de Vieira que coalesce nesta pequena mas bem seleccionada colecção dos seus sermões é o de um pregador ao mesmo tempo hábil, sábio e aventureiro no seu pensamento. Fervilhante de conhecimento da Escritura, teologia e acontecimentos atuais, o que emerge dos sermões do jesuíta é o uso da Escritura como ponto de partida para terrenos improváveis, rápidos para encontrar o tudo-o-presente e histórico, o material da vida real de seu público, sejam eles realeza em Portugal, colonos na Espanha ou membros afro-brasileiros de uma fraternidade leiga. Ao mesmo tempo, no trabalho de Vieira, a escritura torna-se livre para vaguear e vaguear pelo mundo real, desmotivado do seu contexto original, muitas vezes de uma forma que deve ter sido ao mesmo tempo desafiadora e encantadora de ouvir. A edição de Da Silva e Brockey seria perfeita para um curso de história de graduação sobre a América Latina colonial ou o Brasil ou pesquisas de história religiosa de várias configurações temporais e espaciais. Quem sabe, ele poderia oferecer algumas aulas cobiçadas e precisaria de inspiração para oradores – pregadores, professores e políticos – de nossos próprios dias também.